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sábado, 6 de dezembro de 2014

DA CONFISSÃO PERFEITA (IX)

Edição de referência:
Sermões, Padre Antônio Vieira, Erechim: Edelbra, 1998.
   


Sermão da Terceira Dominga da Quaresma

NA CAPELA REAL. ANO 1655


Cum ejecisset daemonium, locutus est mutus, et admiratae sunt turbae. [1]



IX

Quando? Quando fazem os ministros o que fazem, e quando fazem o que devem fazer? Antigamente estavam os tribunais às portas das cidades: agora estão as cidades às portas dos tribunais. Efeitos terríveis das dilações no atender os requerimentos. Cristo e seu requerimento ao Pai no Horto das Oliveiras. O desengano, grande alívio para os não despachados.


Quando? Esta é a última circunstância do nosso exame. E quando acabaria eu se houvera de seguir até o cabo este quando? Quando fazem os ministros o que fazem, e quando fazem o que devem fazer? Quando respondem? Quando deferem? Quando despacham? Quando ouvem? Que até para uma audiência são necessários muitos quandos. Se fazer-se hoje o que se pudera fazer ontem, se fazer-se amanhã o que se devera fazer hoje, é matéria em um reino de tantos escrúpulos e de danos muitas vezes irremediáveis, aqueles quandos tão dilatados, aqueles quandos tão desatendidos, aqueles quandos tão eternos, quanto devem inquietar a consciência de quem tiver consciência?

Antigamente, na República Hebréia, e em muitas outras, os tribunais e os ministros estavam às portas das cidades. Isso quer dizer nos Provérbios: Nobilis in portis vir ejus, quando sederi' cum senatoribus terrae.[29] Para qualificar a nobreza do marido da mulher forte, diz que tinha assento nas portas com os senadores e conselheiros da terra. A isto aludiu também Cristo quando disse da Igreja que fundava em S. Pedro: Portae inferi non praevalebunt adversus cana (Mt. 16, 18): Que as portas do inferno não prevaleceriam contra ela, – entendendo por portas do inferno os conselhos do inferno, porque os conselhos, os ministros, os tribunais, tudo costumava estar às portas das cidades, Mas que razão tiveram aqueles legisladores para situarem este lugar aos tribunais, e para porem às portas das cidades os seus ministros? Várias razões apontam os historiadores e políticos, mas a principal, em que todos convêm, era a brevidade do despacho. Vinha o lavrador, vinha o soldado, vinha o estrangeiro com a sua demanda, com a sua pretensão, com o seu requerimento, e sem entrar na cidade, voltava respondido no mesmo dia para sua casa. De sorte que estavam tão prontos aqueles ministros, que nem ainda dentro da cidade estavam, para que os requerentes não tivessem o trabalho, nem a despesa, nem a dilação de entrarem dentro. Não saibam os requerentes a diferença daquela era à nossa, para que se não lastimem mais. Antigamente estavam os ministros às portas das cidades; agora estão as cidades às portas dos ministros. Tanto coche, tanta liteira, tanto cavalo, que os de a pé não fazem conto, nem deles se faz conta. As portas, os pátios, as ruas rebentando de gente, e o ministro encantado, sem se saber se está em casa, ou se o há no mundo, sendo necessária muita valia só para alcançar de um criado a revelação deste mistério. Uns batem, outros não se atrevem a bater, todos a esperar, e todos a desesperar. Sai finalmente o ministro quatro horas depois do sol, aparece e desaparece de corrida, olham os requerentes para o céu, e uns para os outros, aparta-se desconsolada a cidade que esperava junta. E quando haverá outro quando? E que vivam e obrem com esta inumanidade homens que se confessam, quando procediam com tanta razão homens sem fé nem sacramentos? Aqueles ministros, ainda quando despachavam mal os seus requerentes, faziam-lhes três mercês: poupavam-lhes o tempo, poupavam-lhes o dinheiro, poupavam-lhes as passadas. Os nossos ministros, ainda quando vos despacham bem, fazem-vos os mesmos três danos: o do dinheiro, porque o gastais, o do tempo, porque o perdeis, o das passadas, porque as multiplicais. E estas passadas, e este tempo, e este dinheiro, quem os há de restituir? Quem há de restituir o dinheiro a quem gasta o dinheiro que não tem? Quem há de restituir as passadas a quem dá as passadas que não pode? Quem há de restituir o tempo a quem perde o tempo que havia mister? Oh! tempo tão precioso e tão perdido! Dilata o julgador oito meses a demanda, que se pudera concluir em oito dias; dilata o ministro oito anos o requerimento, que se devera acabar em oito horas. E o sangue do soldado, as lágrimas do órfão, a pobreza da viúva, a aflição, a confusão; a desesperação de tantos miseráveis? Cristo disse que o que se faz a estes, se faz a ele. E em ninguém melhor que nele se podem ver os efeitos terríveis de uma dilação.

Três horas requereu Cristo no horto. Nestas três horas fez três petições sobre a mesma proposta: a nenhuma delas foi respondido. E como o sentiu, ou que lhe sucedeu? Foi tal a sua dor, a sua aflição, a sua agonia, que chegou a suar sangue por todas as veias: Factus est sudor ejes sicut guttae sanguins decurrentis in terram,[30] Toda a vida de Cristo em trinta e três anos foi um contínuo exercício de heroica paciência, mas nenhum trabalho lhe fez suar gotas de sangue, senão este de requerer uma, outra e três vezes, sem ser respondido. Se três horas de requerimento sem resposta fazem suar sangue a um Homem-Deus, tantos anos de requerimentos e de repulsas, que efeitos causarão em um homem-homem, e tanto mais quanto for mais homem? O requerimento de Cristo: Pater, si possibile est,[31] suposto o decreto do Padre e a presciência do mesmo Cristo, era de matéria não possível. E se não ser respondido a um impossível custa tanto, não ser respondido no que talvez se faz a todos, quanto lastimará? O que mais se deve sentir nestas desatenções dos que têm ofício de responder, são os danos públicos que delas se seguem. Não estivera melhor a república, que o sangue que se sua no requerimento, se derramara na campanha? Pois isso mesmo sucedeu neste caso. Se Cristo não suara sangue no Horto, havia de derramar mais sangue no Calvário, porque havia de derramar o sangue que derramou, e mais o que tinha suado. Se no requerimento se esgotarem as veias, a quem há de ficar sangue para a batalha? Nem fica sangue, nem fica brio, nem fica gosto, nem fica vontade: tudo aqui se perde. Começou Cristo a orar ou a requerer no Horto, e começou juntamente a quê? A enfastiar-se, a temer, a entristecer-se: Coepit povere, et taedere, contristari, et maestus esse (Mc. 14, 33; Mt, 26, 37). O mesmo acontece na corte ao mais valoroso capitão, ao mais brioso soldado. Vai um soldado servir na guerra, e leva três coisas: leva vontade, leva ânimo, leva alegria. Toma da guerra a requerer, e todas estas três coisas se lhe trocam. A vontade troca-se em fastio: taedere; o ânimo troca-se em temor: pavere: a alegria troca-se em tristeza: et maestus esse. E quem tem a culpa de toda esta mudança, tão danosa ao bem público? As dilações, as suspensões, as irresoluções, o hoje, o amanhã, o outro dia, o nunca dos vossos quandos. E faz consciência destes danos algum dos causadores deles? Pois saibam, ainda que o não queiram saber, e desenganem-se, ainda que se queiram enganar, que a restituição que devem, não é só uma, senão dobrada. Uma restituição ao particular, e outra restituição à república. Ao particular porque serviu, à república porque não terá quem a sirva. Dir-me-eis que não há com que despachar e com que premiar a tantos. Por esta escusa esperava. Primeiramente eles dizem que há para quem quereis, e não há para quem não quereis. Eu não digo isso porque o não creio, mas se não há com que, por que lhe não dizeis que não há? Por que os trazeis suspensos? Por que os trazeis enganados? Por que os trazeis consumidos, e consumindo-se? Esta pergunta não tem resposta, porque ainda que pareça meio de não desconsolar os pretendentes, muito mais os desconsola a dilação e a suspensão, do que os havia de desconsolar o desengano. No mesmo passo o temos.

Estando Cristo na maior aflição do seu requerimento, desceu um anjo do céu a confortá-lo: Apparuit illi angelus de caelo confortons eum (Le. 22, 43). E em que consistiu o conforto, se a resposta foi que bebesse o cálix, contra o que Cristo pedia? Nisso mesmo esteve o conforto, porque ainda que lhe não respondesse com o despacho, responderam-lhe com o desengano. Vede quanto melhor é desenganar aos homens que dilatá-los e suspendê-los. A dilação e a suspensão para Cristo era agonia; o desengano foi alento. A dilação sem despacho são dois males; o desengano sem dilação é um mal temperado com um bem, porque se me não dais o que peço, ao menos livrais-me do que padeço. Livrais-me da suspensão, livrais-me do cuidado, livrais-me do engano, livrais-me da ausência de minha casa, livrais-me da corte e das despesas dela, livrais-me do nome e das indignidades de requerente, livrais-me do vosso tribunal, livrais-medas vossas escadas, livrais-me dos vossos criados, enfim, livrais-me de vós. E é pouco? Pois se com um desengano dado a tempo, os homens ficam menos queixosos, o governo mais reputado, o rei mais amado, e o reino mais bem servido, por que se há de entreter, por que se há de dilatar, por que se não há de desenganar o pobre pretendente, que tanto mais o empobreceis, quanto mais o dilatais? Se não há cabedal de fazenda para o despacho, não haverá um não de três letras para o desengano? Será melhor que ele se desengane depois de perdido, e que seja o vosso engano a causa de se perder? Quereis que se cuide que o sustentais na falsa esperança, porque são mais rendosos os que esperam que os desenganados? Se lhe não podeis dar o que lhe negais, quem lhe há de restituir o que lhe perdeis? Oh! restituições! Oh! consciências! Oh! almas! Oh! exames! Oh! confissões! Seja a última admiração esta, pois não louvo nem condeno, e só me admiro com as turbas: Et admiratae sunt turbae.
   
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Notas:
[1] Depois de ter expelido o demônio, falou o mudo, e se admiraram as gentes (Lc. 11, 14).
[29] Seu marido será ilustre na assembléia dos juízes, quando estiver assentado com os senadores da terra (Prov. 31, 23).
[30] E veio-lhe um suor, comode gotas de sangue, que corria sobre a terra (Lc. 22, 44). 
[31] Pai meu, se é possível (Mt. 26, 39).

 


Índice  



Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística: http://www.literaturabrasileira.ufsc.br/documentos/?action=download&id=28705#_ftnref1.



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